Aparição n° 03 - o Pélago Putrefato - Elemento: Água

Uma Aparição cruza a cidade buscando pelos velhos deuses renegados. Como um presságio do fim dos tempos, o arauto da cólera escancara os mares de sangue, plástico, metal e concreto com o qual a necrópole tentou, inútilmente, soterrar os verdadeiros rios e oceanos.
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Sobre a obra

Nesta performance, o artista Mandú percorre a cidade vestindo redes, boias, correntes, peneiras e diversos objetos ligados a pesca, garimpo ou caça marinha. As vestimentas ainda incluem diversos adornos de lixo compactado, sacolas, garrafas e latas nesta composição imagética. Costurados entre as diversas camadas dessa aparição estão diversos órgãos de animais.
Pélago significa mar profundo ou alto-mar, sendo também uma palavra utilizada para descrever um abismo profundo, de dimensões oceânicas. Etimologicamente, a palavra pélago está ligada a pelagus e pode descrever qualquer corrente de água, rio, riacho ou lençol freático. É comum a referência poética de que criaturas míticas e abissais habitam o pélago dos oceanos. Putrefação é a decomposição do corpo em sentido figurado. Putrefato pode ser utilizado como sinônimo de corrompido, deteriorado ou destruído.

Processo Criativo

A ideia geral da performance foi elaborada por Mandú, sendo pensada como uma performance chamada “O acorrentado Putrefato”, que pretendia primeiramente realizar uma reflexão ativa sobre o papel do artista na cidade e, ao mesmo tempo, escancarar os “mares de sangue” que varrem as marginais das grandes cidades. A conexão entre a água e o sangue na performance nunca deixou de ser um ponto central no processo criativo, porém, ao longo dos meses de criação desta imersão digital diversas questões atravessaram os artistas no que toca o elemento água.
O conflito histórico entre povos indígenas e o garimpo se tornou um grande debate nacional após as violações trazidas a público, que culminaram com o presidente Lula prometendo a retirada definitiva do garimpo das terras yanomami na 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, na Raposa Serra do Sol. Mandú morou por um ano em Roraima, trabalhou em acampamentos de refugiados e imigrantes, sendo dois desses abrigos indígenas. O artista, que tem diversos amigos em Raposa Serra do Sol e conhece essa realidade de perto, não pode deixar de se afetar profundamente com as imagens que correram o Brasil nessas semanas.
Entre sincronicidades e ironias do destino, uma grande catástrofe ocorreu no Litoral Norte de São Paulo, onde o artista viveu parte da infância e toda a adolescência. No dia 21 fevereiro 2023 ja haviam sido confirmadas 40 mortes e mais de 750 pessoas estavam desabrigadas. Em um fim de semana, as cidades do Litoral Norte Paulista tiveram o maior acumulado de chuvas já registrado no país: foram 682 milímetros.
Esse evento recente e traumático ocorre 56 anos após a maior tragédia ligada às chuvas na história de São Paulo, que ocorreu em 18 de março de 1967 no município de Caraguatatuba, quando as águas causaram o desmoronamento de encostas e centenas de casas foram soterradas.
Com tantas imagens de dor e destruição de territórios tão caros e amados pelo artista, a performance foi reformulada com base em alguns arquétipos:

Tiamat e Apsu: são divindades das cosmologias suméria e babilônica, Tiamat é uma deusa associada ao oceano, tendo sua contraparte masculina em Apsu, associado à água doce.

Tehom: era o oceano cósmico da cosmologia bíblica, que cobria a Terra até que Deus criou o firmamento para dividi-la em porções superior e inferior e revelar a terra seca. O mundo tem sido protegido do oceano cósmico desde então pela sólida cúpula do firmamento. O assiriologista Heinrich Zimmern escreve em seu estudo comparativo dos mitos da criação babilônico e hebraico: de acordo com ambas as tradições antes da criação, tudo era água. O abismo é personificado como um terrível monstro, usado como a expressão técnica para o oceano primordial.
Leviatã: Leviatã é um peixe feroz citado na Tanakh, ou no Antigo Testamento. É uma criatura que, em alguns casos, pode ter interpretação mitológica, ou simbólica, a depender do contexto em que a palavra é usada. No Antigo Testamento é retratado no Livro de Jó, capítulo 41, e no Livro de Isaías, capítulo 27. Durante a Idade Média a Igreja Católica associou o Leviatã ao quinto pecado capital, a Inveja, retratando-o também com um dos sete príncipes infernais.
Após a consolidação do conceito geral, Mandú se concentrou em sua preparação física e na elaboração do trajeto da performance enquanto toda a Seita se concentrou na formulação estética da Aparição. Foram muitas preparações necessárias para que o figurino de mais de doze quilos chegasse ao fim do longo trajeto de sete quilômetros que abrangeu: Hospital Pró-Infancia – Unidade de Tratamento de Água e Esgoto da Vila Ema – Supermercado Villarreal – Avenida Doutor Eduardo Cury – Shopping Colinas – A Ponte Estaiada Juana Blanco, também conhecida como Arco da Inovação – Jardim Aquarius e Avenida Jorge Zarur.

Ficha Técnica

Performer: Mandú.
Fotografias: K8 Valença e Will S. Sousa.
Captação de vídeo: Diego Almeida.
Conceito e narrativa: Dae Lee, Diego Almeida, Eduardo Fernandes, GUIA, Henri Ferraz, K8 Valença, Mandú, Mariana Thaís, Morgana, Will S. Sousa.
Figurino e maquiagem: Dae Lee, Diego Almeida, Eduardo Fernandes, GUIA, Henri Ferraz, K8 Valença, Mandú, Mariana Thaís, Morgana, Will S. Sousa.
Produção Executiva: Dae Lee, Diego Almeida, Eduardo Fernandes, GUIA, Henri Ferraz, K8 Valença, Mandú, Mariana Thaís, Morgana, Will S. Sousa.

Referências

Em memória de Devair Fiorotti (1972-2020), Jaider Esbell (1979-2021) e Elza Soares (1930-2022). Devair e Jaider eram amigos do artista e Elza a grande matriarca que embalou seus ensaios com musicas como “Lata D’água”, “Coração do Mar”, “Banho”, “Na Pele” e “Virei o Jogo”.
Heinrich Zimmern (1901). O Antigo Oriente, N° III: A Gênese Babilônica e Hebraica. Kessinger Publishing.
Gaston Bachelard (1996). A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes. Trabalho original publicado em 1960.
Davi Kopenawa e Bruce Albert (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.
Elza Soares e Guilherme Kastrup (2015). A Mulher do Fim do Mundo. Circus.
Devair Fiorotti e Jaider Esbell (2017). Urihi nossa terra, nossa floresta. Roraima: Patuá.
Elza Soares e Rafael Ramos (2019). Planeta Fome. Deckdisc.
Fabrice Monteiro (2013-2020). Fabrice Monteiro: The Prophecy. Chazen Museum of Art. Disponível aqui.
Projeto Ecopoética (2019-2022). Dilúvio MA. Disponível aqui.
Esta imersão digital é parte do Cultos Marginais, projeto nº 37/2022 beneficiado pelo Edital n° 001/P/2022 de Criação e Temporada do Fundo Municipal de Cultura de São José dos Campos. O conteúdo desta obra é de responsabilidade exclusiva dos autores e não representa a opinião dos membros do Conselho Gestor do Fundo Municipal de Cultura ou da Fundação Cultural Cassiano Ricardo.
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