Daemons

Na cultura árabe, os djinns ou gênios eram entidades eternas capazes de ajudar os homens, descritos no Alcorão como seres detentores de livre-arbítrio, podendo ser bons ou maus. No Egito, eram conhecidos como Néteres e comandavam aspectos mentais, materiais e espirituais do Cosmos. Na cultura africana, são associados aos Exus, intermédio entre Orixás e humanos, responsáveis por comandar as encruzilhadas. Dentro da cosmologia cristã, os Daemons começaram a ser descritos como entidades infernais, sendo 72 desses seres aprisionados numa urna pelo Rei Salomão, terceiro rei de Israel, filho de Davi e Bate-Seba.
A Goetia, uma prática de magia que trabalha especificamente com essas 72 entidades, é utilizada para invocar esses espíritos. O objetivo da invocação é que esse espírito possa ajudar o invocador. Os Daemons são considerados repulsivos em diversas crenças, ao mesmo tempo que estão inerentemente interligados aos humanos, sendo considerados criaturas errantes justamente pelas características que compartilham com a humanidade, sendo também representações dos medos de diversos povos ao longo dos séculos. Diante desses conceitos, os Daemons são representados nessa série a partir da pentalogia de performances As Aparições. Cada chifre corresponde a uma respectiva entidade da Goetia.

Sobre as obras

A poética de Morgana perpassa principalmente a utilização dos chifres como elemento representativo da demonização de certos tipos de corpos e vem de um longo estudo sobre Alta Magia, Goetia e atualmente o Luciferianismo. Com isso, a produção dos chifres da série Daemons em argila esteve interligada com as performances ao mesmo tempo que eu utilizava elementos e ferramentas do meu conhecimento passado como ilustradora e artista gráfica.
Gaap é o trigésimo espírito da goetia, diz-se que é um príncipe com poder de transportar os homens de um reino ao outro em um instante. A Escultura foi feita com argila, tinta acrílica e primer.
Valac é o sexagésimo espírito da goetia, aparece como uma criança com asas de anjo, montado sob um dragão bicéfalo. Dá respostas sobre coisas ocultas e comanda serpentes. A escultura foi feita com argila, terra, plantas e primer.
Leraje é o décimo quarto espírito, é um marquês que aparece na forma de arqueiro. Ele causa grandes batalhas e as feridas de suas flechas apodrecem o alvo. A escultura foi feita com argila, sangue, tinta acrílica, lixo e primer.
Haures é o sexagésimo quarto espírito, é um grande duque que aparece como um leopardo imponente. Destrói e queima os inimigos do invocador. A escultura foi feita com argila, pavio de vela, barbante e primer.
Andrealphus é o sexagésimo quinto espírito, assume a forma de um pavão, que fala em línguas com duas vozes ao mesmo tempo. A escultura foi feita com argila, tinta acrílica, acessórios e primer.

Processo Criativo

Durante as conversas sobre a concepção das performances, foi levantada a possibilidade de realizar uma das performances utilizando chifres. Essa ideia vem dos estudos sobre o processo de demonização das entidades Coníferas, que são arquétipos presentes em diversas culturas, sendo representados como entidades com chifres, que representam a vida, fertilidade, sexualidade e contato com a natureza para diversos povos.
Uma das formas de demonizar cultos considerados pagãos foi, justamente, a demonização das entidades com chifres. Em um trecho do Livro das Sombras – Alquimistas de Caldeirão é dito que: “Os chifres sempre representaram a fertilidade, coragem e todos os atributos positivos da energia masculina, representando também a ligação com as energias cósmicas”. Logo depois, afirma-se que: “Hoje a figura do Deus Cornífero é bastante problemática, pois, com o advento do Cristianismo, ele foi usado para personificar a figura do Diabo, entidade criada pelas religiões judaico-cristãs”.
Dito isso, não é coincidência que atualmente os Exus da Umbanda e do Candomblé sejam associados ao “diabo” mesmo que não seja possível encontrá-lo em nenhuma dessas culturas, pois estas seguem cosmologia Iorubá, que se baseia no culto aos ancestrais e aos elementos da natureza para justificar a criação do planeta e do homem, não tendo, portanto, essa dicotomia entre um Deus e um opositor.
Com o andamento das performances, a ideia de realizar uma performance com chifres acabou sendo descartada. Tempo depois, surgiu a ideia de realizar uma série de chifres associando cada performance a um dos Daemons da Goetia, pois assim como as divindades demonizadas, os nossos trabalhos podem ser considerados repulsivos ou maléficos para algumas pessoas.

Ficha Técnica

Produção, conceito e narrativa: Morgana.

Referências

MacGregor Mathers (XVII). The Goetia: The Lesser Key of Solomon the King.
Hélio Oiticica (1966-1967). Bólide Caixa 22 “Mergulho do corpo”.
Lygia Clark (1968). Máscara Abismo.
Teto Preto (2016). Gasolina. Disponível aqui.
Martin kathleen (2020). O livro dos símbolos: reflexões sobre imagens arquetípicas. São Paulo: Taschen do Brasil.
Marcia Falcão (2021). Invasão do Alemão.
Esta imersão digital é parte do Cultos Marginais, projeto nº 37/2022 beneficiado pelo Edital n° 001/P/2022 de Criação e Temporada do Fundo Municipal de Cultura de São José dos Campos. O conteúdo desta obra é de responsabilidade exclusiva dos autores e não representa a opinião dos membros do Conselho Gestor do Fundo Municipal de Cultura ou da Fundação Cultural Cassiano Ricardo.
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